quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Ex-secretário da Fazenda vê pessimismo exagerado na imprensa

Barbosa:  no longo prazo país tem grande potencial   de crescimento
(Marcelo Camargo/ABr)
O ótimo site de José Dirceu traz uma entrevista longa e muito esclarecedora com o ex-secretário-executivo do Ministério da Fazenda, Nelson Barbosa. Segundo ele, o debate econômico no Brasil ainda é preso ao passado e distante da realidade que o país vive hoje. Ele ainda acha que o grande desafio agora é tentar buscar um consenso em relação às diferentes correntes existentes, que pregam receitas divergentes para o Brasil e não dialogam entre si. 
Barbosa também vê um "pessimismo exagerado" em relação à situação econômica do Brasil e é otimista em relação ao futuro do país.
A seguir, a íntegra de sua entrevista:

José Dirceu: O pessimismo econômico de boa parte da imprensa tem sua razão de ser?

Nelson Barbosa: Não. Existe um pessimismo exagerado. Nos últimos anos houve mudanças no mundo e no próprio Brasil que geraram um crescimento menor e uma inflação maior, mas nada que não possa ser corrigido pelo governo gradualmente. Do ponto de vista de longo prazo, o país continua tendo um grande potencial de crescimento com base no seu mercado interno. Continuamos tendo um grande potencial de aumento de investimentos, de aumento de produtividade e de integração de mais pessoas no mercado de consumo de massa, no mercado de trabalho e no mercado de crédito, que é o que conta para o futuro da nossa economia.

Dirceu: Qual o grande desafio para a economia brasileira atual e qual deve ser o papel do governo?
Barbosa: Eu vejo dois grandes desafios, um externo e outro interno. Do lado externo, a conjuntura internacional hoje é menos favorável que a do passado. O índice de preço das nossas exportações parou de subir, mas se estabilizou num patamar elevado. Assim, ainda temos um cenário internacional favorável, mas não tão favorável quanto quando os preços de nossas exportações cresciam a cada ano. Nesse novo cenário é muito importante aumentar a produtividade e a competitividade da economia, para que o crescimento da nossa demanda interna gere produção e empregos no país. O aumento da produtividade e competitividade requer uma atuação do governo, ações para diversificar nossa base produtiva e aumentar a capacidade de pesquisa e desenvolvimento de novos produtos e processos no Brasil. Algumas destas ações não requerem mais recursos públicos, pois envolvem mudanças inteligentes na regulação dos mercados. Mas também será necessário adotar incentivos fiscais e financeiros para o desenvolvimento produtivo, sobretudo para a inovação tecnológica. Do ponto de vista interno, nosso próprio sucesso nos últimos anos colocou novos desafios à política econômica. Como nós conseguimos reduzir o desemprego e melhorar a distribuição de renda, é natural que as demandas sociais se intensifiquem em outras áreas, como saúde, educação e segurança públicas, o que exigirá mais recursos fiscais. Mesmo aumentando a eficiência do governo e combatendo a corrupção, que é obrigação de qualquer governo, também será necessário aumentar o gasto público por habitante com educação, saúde, segurança pública, transporte urbano, inclusão digital e outras formas de inclusão social. A necessidade de maior desenvolvimento produtivo e social vai exigir recursos públicos, num contexto de maior restrição fiscal do governo por que o preço de nossas exportações já não sobe tão fortemente quanto antes. Assim, o aumento das demandas produtivas e sociais sobre o governo terão que ser administradas na velocidade que o orçamento fiscal permite. Há espaço fiscal para fazer várias coisas, mas não para atender tudo ao mesmo tempo. Nessa situação nosso maior desafio é político, é saber como construir um consenso nacional capaz de manter o modelo de desenvolvimento para todos e, ao mesmo tempo, atender a essas novas demandas produtivas e sociais. Nosso desafio é criar um consenso político capaz de fazer o Brasil avançar, mas sem renunciar às conquistas obtidas nos últimos anos.

Dirceu: Isso significa que nós precisamos aumentar os investimentos públicos. Como não podemos aumentar os impostos, ou crescemos e temos recursos, ou vem do pré-sal ou fazemos uma reforma tributária. De qualquer maneira, o governo vai ter de participar dos investimentos de infraestrutura. Sem baixar o custo do serviço da dívida interna, nós temos margem para crescer o gasto público em investimentos?

Barbosa: Em primeiro lugar temos que continuar aumentando o gasto social por habitante, como já vem ocorrendo, mas agora com maior foco em outras áreas de atuação social do governo. O gasto com educação já subiu bastante e continuará a crescer. O gasto com saúde começou a subir mais rapidamente nesse ano e deve continuar a subir nos próximos anos. Para acomodar isso é preciso estabilizar as transferências de renda em % do PIB. Dentro do próprio orçamento social é possível fazer isso. Por exemplo, podemos continuar a aumentar gradualmente o salário mínimo – a nova regra de reajuste será decidida em 2015 – com ajustes no programa de abono salarial. É uma questão de discutir qual gasto social vai receber mais recursos dentro do orçamento social.Na questão mais geral, o Brasil já trabalha com um resultado [superávit] primário mais baixo nos últimos anos e isso não gerou grandes problemas para a economia. Podemos manter o resultado primário na faixa de 1,5% a 2,5% do PIB nos próximos anos e isso já nos dará algum espaço fiscal em 2015-18. Com um primário nessa faixa a dívida líquida do governo tende a ficar estável em % do PIB. O maior problema hoje está na dívida bruta do setor público, no lado financeiro e não no lado primário do orçamento do governo. Ultimamente eu venho colocando que a taxa real de juros no Brasil caiu – hoje ela está em torno de 4% ao, quando ela era 10% ao ano há quatro anos -, mas o custo da dívida pública ainda não caiu. Continuamos a pagar cerca de 4,5% do PIB na forma de juros sobre a dívida pública. Por quê? Por que o governo teve que emitir títulos públicos para comprar reservas internacionais e emprestar recursos aos bancos públicos, e isso fez com que a dívida bruta do setor público subisse mesmo num contexto de queda da taxa real de juro.Do lado das reservas, o BC comprou dólares e esterilizou essas operações com aumento da dívida pública, via operações compromissadas. Essa política é correta, por que ela dá autonomia à nossa política econômica. Com um alto estoque de reservas internacionais o Brasil tem mais margem de manobra sobre o seu próprio destino. Quando vem uma crise lá de fora, o real se deprecia e nossa dívida líquida cai e o governo tem espaço fiscal para enfrentar a crise, como ocorreu em 2008. Diferentemente do passado, hoje, quando vem uma crise externa, o Brasil não quebra nem tem que pedir recursos ao FMI. Porém, a política de acumulação de reservas também é muito cara, pois emitimos títulos a 10% ao ano no mercado interno e aplicamos a 2% ao ano no resto do mundo. O custo financeiro de manter reservas internacionais é alto, mas ele é o preço necessário para que o Brasil tenha mais autonomia de política econômica. Do lado dos bancos públicos, o governo também aumentou a dívida bruta para dar recursos ao sistema financeiro oficial. Isso ocorreu para combater os efeitos da crise de 2008. Houve uma contração muito forte da oferta de crédito. Para manter a economia rodando e sustentar o investimento, a União tomou recursos a taxas de mercado, a 10% ao ano, e emprestou esses recursos a uma taxa subsidiada ao BNDES, a 5% ao ano. Com isso o BNDES teve capacidade de aumentar sua oferta de crédito e sustentar o nível de atividade da economia. Assim como no caso das reservas internacionais, os empréstimos da União aos bancos públicos foram corretos, mas com um grande custo financeiro. Diferentemente do caso das reservas internacionais, não é mais necessário continuar aumentando os empréstimos da União aos bancos públicos. O próprio governo já anunciou que vai reduzir seus aportes no BNDES e isso vai gradualmente reduzir o custo financeiro da dívida pública. Com essa atuação haverá uma queda gradual no pagamento de juros por parte do governo, em % do PIB. Reserva tem de acumular mesmo, talvez não no mesmo volume dos anos passados, se não houver um forte ingresso de capitais no Brasil. Mas no caso dos bancos públicos nós temos que gradualmente reduzir os aportes da União, pois isso vai reduzir a conta de juros do governo e abrir espaço fiscal para aumentar outros gastos, como os gastos sociais que eu já mencionei. Tudo isso tem de ser feito gradualmente para não virar a economia do avesso, mas esse é um espaço a ser utilizado nos próximos anos.

Dirceu: E o dólar? Nossa indústria aguenta o dólar abaixo de 2,20?

Barbosa: Alguma indústria aguenta, mas o dólar não deve ficar baixo de R$ 2,20 por muito tempo porque mudou o ciclo internacional. Os preços das commodities pararam de subir, mas devem ficar estáveis. Do lado financeiro, não vai ser de imediato, mas tudo indica, que deve ocorrer alguma normalização das taxas de juro nos Estados Unidos. Depois da última confusão [a controvérsia sobre limite da dívida norte-americana], ninguém tem muita certeza como será a evolução da política macroeconômica dos EUA. E na Europa a situação melhorou, mas ainda é frágil. Por essas razões eu não acho que o dólar ficará abaixo dos R$ 2,20 por muito tempo. E R$ 2,20 ainda é uma taxa de câmbio bem apreciada para nossas empresas industriais. Hoje o custo unitário do trabalho do Brasil está alto em moeda estrangeira. Nossos salários estão relativamente altos em dólares e isso tira a competitividade da indústria. Contra isso despontam três estratégias de ajustes, cada uma com ênfase em um mecanismo. Em primeiro lugar, há a turma que prega uma recessão, um aumento substancial da taxa de desemprego para fazer o salário crescer mais lentamente e, com isso, reduzir o custo unitário do trabalho. Esta é, por exemplo, a solução europeia, o que eles estão tentando fazer na Espanha, na Itália. O problema dessa solução é que ela tem um alto custo social, e demora muito tempo. Esse tipo de estratégia nunca deu certo em países grandes como o nosso. É inviável por definição. A outra estratégia é promover uma maxidesvalorização do real. Jogar a taxa de câmbio lá em cima e adotar uma política monetária e fiscal restritiva para fazer com que a desvalorização do real não gere muita inflação. O aumento da taxa de câmbio e a política econômica restritiva que a acompanha geram uma recessão, não tão forte quanto na opção anterior, mas ainda assim uma recessão e um aumento no desemprego. Essa estratégia também tem um custo social significativo, não tão alto quanto a primeira alternativa, mas ainda assim um impacto negativo para os trabalhadores, pois a maxidesvalorização do real gera inflação, derruba salário e aumenta o desemprego. Além desse problema, a manipulação da taxa de câmbio é incompatível com o atual sistema brasileiro, com liberdade de movimentação de capitais. Não acho que essa é uma solução boa. A terceira alternativa é aumentar a produtividade do trabalho, de modo a fazer com o atual nível de salários deixe de ser excessivo quando comparado com o resto do mundo. É isso que o atual governo está vem tentando fazer. Aumentar investimentos em educação e infraestrutura, desonerar impostos e aumentar o crédito para acelerar o crescimento da produtividade. Essas ações estão na direção correta, mas tem um impacto bem lento sobre a economia. Demora para o investimento se materializar e para a produtividade aumentar. Desonerações e incentivos financeiros têm um impacto mais rápido, mas com grande custo fiscal. Na situação atual, não há espaço fiscal para grandes desonerações nem para a continuação de grandes empréstimos subsidiados da União aos seus bancos públicos. As ações tem que se concentrar no aumento do investimento e na melhora do ambiente de negócios, como o governo tem tentado fazer. Qual ajuste vai acontecer? Será via câmbio ou produtividade? Ao tomar uma medida para aumentar a produtividade, o governo torna menor o ajuste necessário do câmbio se e quando isso acontecer. No nosso regime de câmbio flutuante o mercado dá a tendência e o governo tenta diminuir a volatilidade em torno desta tendência. Assim, se não houver um aumento suficiente da produtividade da economia, cedo ou tarde haverá um ajuste maior via câmbio, mas pelo mercado, não produzido pelo governo. Esse é o melhor regime e, tendo reservas internacionais, o governo garante que o país atravessará flutuações cambiais sem crise financeira.

Dirceu: No primeiro semestre a inflação dominou boa parte do noticiário. O assunto perdeu força, mas ainda aparece. Há motivos para que a inflação ainda cause preocupação?

Barbosa: No final de 2002, o Brasil tinha uma inflação de 12,5% ao ano; em fevereiro de 2003, ela chegou a 17% ao ano, e depois ela caiu. O fato de ela estar agora alta preocupa, mas não é nenhuma tragédia ou problema que não possa ser resolvido no seu devido tempo. Nós já reduzimos a inflação no passado e somos capazes de fazer isso novamente. O Banco Central já está pilotando a Selic para trazer a inflação para a meta e acredito que chegue à meta de 4,5% em 2015. Temos que trazer a inflação para o centro da meta porque nossa inflação é muito volátil. Qualquer choque joga a inflação para cima ou para baixo muito rápido, então temos que ficar perto do centro da meta para poder administrar os choques de preço que recorrentemente impactam o Brasil. A maior preocupação atual é que inflação está demorando a cair, mas essa queda mais lenta deve-se a alguns bons problemas e a questões que estão fora do controle da política econômica. Do lado dos bons problemas, nós temos uma baixa taxa de desemprego, políticas sociais que reduzem a pobreza e uma política de salário mínimo que melhorou a distribuição de renda. Essas políticas de transferências de renda podem, em algum momento, causar uma pressão no preço relativo dos serviços, mas isso é o que eu chamo de política civilizatória. Todo país que se tornou desenvolvido, que teve um aumento da renda per capita, experimentou um aumento no preço relativo dos serviços. Até recentemente a inflação mais alta dos serviços era compensada por choques favoráveis em outros preços. O que aconteceu ultimamente foi uma sequência de choques desfavoráveis nesses outros preços. O desafio agora é trazer a inflação para a meta, sem abandonar as conquistas sociais dos últimos anos. Por exemplo, recentemente o Brasil adotou uma nova legislação sobre o transporte de carga, sobre as condições de trabalho dos caminhoneiros, o que é um avanço social. Isso tem um custo porque aumentou o custo do frete, mas do outro lado teremos um sistema mais seguro e mais eficiente. Outro exemplo: tivemos, também recentemente, uma nova regulação do trabalho dos empregados domésticos, outra medida civilizatória, que aumenta a inflação no curto prazo, mas que representa um avanço social no longo prazo. Essas medidas civilizatórias são necessárias, mesmo que elas impliquem num aumento temporário da inflação. No passado esses tipos de choques nos preços dos serviços eram compensados com os outros preços. Caíam os preços dos alimentos, apreciava o câmbio. Agora, nós estamos vivendo o esgotamento da possibilidade de apreciação cambial. O real no começo do governo da presidenta Dilma Rousseff estava no nível mais apreciado dos últimos anos. No início do governo Lula o real estava muito depreciado e havia espaço para apreciação sem prejudicar muito a economia. Agora já não há tanto espaço para apreciar o real. Então, a política monetária não pode mais contar com a ajuda da taxa de câmbio para compensar a inflação maior nos preços dos serviços. Nessa situação é mais difícil trazer a inflação rapidamente para o centro da meta. Este é o desafio, mas ele não é nem de longe parecido com os problemas que enfrentamos em 2002, quando a inflação estava em 12,5% e ninguém sabia se ela iria cair. Eu acredito que já observamos uma moderação do crescimento e do mercado de trabalho. E com esse aumento da taxa SELIC, a inflação vai cair para o centro da meta de inflação, para 4,5%, até 2015.

Dirceu: Como você está vendo esta questão das concessões e, particularmente, do leilão da Libra?

Barbosa: O governo fez um movimento muito importante de viabilizar os investimentos via concessões, porque assim você cria uma parceria entre Estado e mercado, onde o governo coordena o processo, dá as regras, mas a execução ocorre via setor privado. Nas concessões de infraestrutura, cada área tem sua própria sua lógica e algumas têm mais problemas do que outras. Por exemplo, no caso dos aeroportos a concessão é um sucesso. Há uma grande demanda reprimida e receitas comerciais – não reguladas -, que tornam os aeroportos um negócio altamente rentável. A primeira rodada foi um sucesso e tenho certeza de que atual rodada também será um sucesso. No caso das rodovias as concessões estão progredindo, uma teve êxito; a outra não, mas por características muito peculiares daquela rodovia do Espírito Santo, que não cabe mencionar. A preocupação do governo, legítima, é que os concessionários façam os investimentos mais rapidamente, que ocorra duplicação das rodovias nos primeiros cinco anos da concessão. Esse é um objetivo legítimo, mas como tudo em economia, ele tem um preço. Antecipar os investimentos tem um custo financeiro e logístico que acaba botando a tarifa de pedágio mais alta. Também há incerteza se em algumas rodovias será possível duplicar tudo em apenas cinco anos. O governo sabe destes problemas e está ajustando o modelo, vendo caso a caso, para manter essa prioridade de investir mais rápido e ajustando os editais para tornar os projetos mais atraentes ao setor privado. Em rodovia, o que vamos ver é isso, algumas serão mais rápidas, outras vão precisar de uma revisão, mas vão progredir. Porto é outro setor onde os investimentos vão deslanchar. Tem muita demanda reprimida, então não tenho dúvidas que tem retorno. Ferrovia é um pouco mais complicado porque tem a incerteza de demanda, e mesmo que o governo garanta que vai pagar, o setor privado não tem segurança. E quando digo governo, não é este governo, mas o governo do Brasil nos próximos 35 anos. Então, existem incertezas intrínsecas no negócio ferrovia que não dependem do governo da ocasião, mas da própria natureza da atividade. O caso de Libra é o primeiro leilão de partilha, o processo será um aprendizado para todos os envolvidos. Pelas regras que foram colocadas, o governo tem poder suficiente para que a produção desse campo gere desenvolvimento nacional. Por mais justificadas que sejam as preocupações, o modelo de partilha já dá muito poder ao governo para direcionar o ritmo de produção e o conteúdo local dos investimentos para que a exploração de petróleo gere desenvolvimento para o país. Existe a preocupação manifestada por alguns de que o campo de Libra poderia ser 100% explorado pela Petrobras e não precisaria abrir para participações de outros países. Mas a Petrobras vai ser operadora, vai comandar o processo produtivo e tal. E a produção de petróleo vai ser vendida ao resto do mundo se não houver demanda suficiente para absorvê-la no Brasil. O governo tem todo o controle do processo para garantir que a exploração de Libra vai se reverter em desenvolvimento do país. Se isso vai ser bem ou não utilizado, depende do governo que vai administrar isso. Eu tenho total confiança em que o governo da presidenta Dilma Rousseff vai administrar tudo isso muito bem.

Dirceu: Como você vê o debate econômico hoje no Brasil do ponto de vista técnico, político… É um debate que tem consistência técnica ou está monopolizado pelo debate oposição x governo, do papel que a mídia joga…

Barbosa: Ouvi uma vez de um jornalista e repito sempre: com a mídia, o melhor resultado é o empate, você nunca ganha. Você pode estar diante de um resultado bom, mas sempre terá como destaque um resultado médio ou negativo. Isso é natural, é do jogo, o importante é que agora com a internet você tem outros canais de informações, então fica muito difícil pintar um quadro tendencioso. Ele é rapidamente refutado e esclarecido. No caso da economia, o que temos é hoje é um debate muitas vezes preso no passado quando a realidade do Brasil é outra. Existem algumas grandes correntes que, na falta de melhor termo, eu chamo de financistas, industrialistas e trabalhistas. O pessoal mais ligado ao mercado financeiro quer câmbio apreciado, juros lá em cima, salários lá embaixo, liberalizar a economia e deixar que o mercado que resolva tudo. Isso já se provou insuficiente, parcial e incompleto, em vários momentos da nossa história, e também no resto do mundo. Há outra ala mais industrialista, que quer cambio lá em cima, juros lá embaixo e salário também lá embaixo; é o pessoal do “crescer para depois distribuir”, que defende que o governo coloque todas suas fichas na indústria, aumentando a margem de lucro das empresas, pois isso eventualmente vai gerar mais produtividade e melhores salário para a população. Do ponto de vista teórico isso pode até acontecer, mas na história brasileira iniciativas que privilegiam somente o capital industrial não tendem a chegar rapidamente aos salários. Para que isso aconteça é preciso que os trabalhadores tenham poder de barganha, tenham diretos e um sistema social que promova o emprego e combata a pobreza. Sem isso, incentivar a indústria pode ser bom para os industriais, mas não necessariamente para o restante da economia. E em terceiro lugar há a corrente trabalhista, que quer aumentar o salário e distribuir renda para gerar crescimento. O risco desta corrente é adotar medidas populistas que geram crescimento no curto prazo, mas que acabem em problemas fiscais ou monetários no médio prazo. Um foco excessivo e imediato no aumento de salários e do gasto público tende a gerar inflação e comprometer o equilíbrio fiscal. Pode-se criar uma situação de demanda que não é sustentável, que acaba em crise fiscal, crise cambial ou ambas. Então, no Brasil, você tem esses três grandes polos de interesse brigando com propostas diferentes de política econômica. Nos últimos anos os governos do presidente Lula de da presidente Dilma têm tentado administrar esses interesses conflitantes em torno de um projeto de desenvolvimento que seja bom para a maioria dos trabalhadores. Um projeto mais próximo dos ideais trabalhistas, mas que leva em consideração as preocupações financistas e industrialistas. As principais economias do mundo estão tendo problemas em chegar a um consenso político sobre estratégia de crescimento e distribuição de renda, basta ver o que está acontecendo nos Estados Unidos e na Europa. Onde tem algum consenso, não há muita democracia, como na China. O desafio do Brasil é equacionar os interesses divergentes de financistas, industrialistas e trabalhistas em uma sociedade democrática e aberta. Isso exige muita capacidade política. Há pontos legítimos em cada um desses grupos. No lado financista, o controle da inflação, porque se não tivermos uma inflação baixa e estável, o desenvolvimento não acontece. Nos industrialistas, a indústria forte, pois sem isso não há grande aumento da produtividade, que por sua vez é o que permite o crescimento sustentável dos salários. E no lado trabalhista, o aumento dos salários e a redução da desigualdade da distribuição de renda, pois os ganhos de produtividade e baixa inflação devem se reverter em melhor qualidade de vida para a maioria da população brasileira. O maior desafio da economia política é compatibilizar estes interesses. Acontece que às vezes as coisas ficam disfarçadas e nebulosas por conta da mídia, que quer estabelecer um Fla x Flu. Mas o sucesso depende da construção de consenso, não de um Fla x Flu, e isso acaba prejudicando. No debate econômico é muito fácil você propor soluções extremas. A coisa mais fácil em política econômica é escolher um objetivo, persegui-lo a ferro e fogo e ignorar o resto. Eu consigo trazer a inflação rapidamente para baixo se eu não me importar com o que vai acontecer com o emprego e com o crescimento. Consigo elevar o crescimento rapidamente se eu não me importar com o que vai acontecer com a inflação, com as contas públicas e com as finanças externas do país. O mais difícil é você fazer uma estratégia que tenta conciliar objetivos aparentemente incompatíveis, e aí é uma questão de prioridades e habilidade. Governar é escolher prioridade, escolher o que vai primeiro e o que vai depois. Uma das grandes ações dos governos Lula e Dilma foi dizer “nós vamos administrar os interesses divergentes, mas a prioridade é desenvolvimento para todos”. Esse é o objetivo final. Então temos que reindustrializar o Brasil? Sim, temos que reindustrializar o Brasil. Temos que ter inflação baixa e estável? Sim, temos que ter inflação baixa e estável. Mas reindustrialização e controle da inflação tem que ser compatíveis com o aumento do bem-estar da população. O instrumento não é o fim, ter uma indústria que represente 20% do PIB é um instrumento para melhorar o bem-estar da população. Ter um resultado primário de 2% do PIB é um instrumento para melhorar a qualidade de vida da população, não é o fim em si mesmo. Às vezes, no debate macroeconômico, meios e fins ficam misturados.

Dirceu: Eles acham que o meio determina o fim. Quando começamos a usar a política monetária fiscal e fazer superávit, eles diziam que nós estávamos dando continuidade ao Fernando Henrique. Eu disse que não, “nós estamos usando os instrumentos que existem para segurar a inflação”. Se não tivéssemos feito uma política dos bancos públicos, uma política industrial, não déssemos um novo papel para o Estado, para as empresas estatais, não distribuíssemos renda, nem aumentado o salário mínimo, aí sim nós estaríamos fazendo a mesma coisa que eles. Não fizemos apenas política monetária e fiscal, nós fizemos política de desenvolvimento. Nós retomamos a ideia do desenvolvimento.

Barbosa: Sim, e desenvolvimento vai muito além da macroeconomia. A política macro é importante – sou economista e trabalho com macroeconomia –, mas as questões que temos hoje vão muito além da macroeconomia. Tome a questão dos serviços públicos universais. Esses são serviços que no Brasil são feitos pelos Estados e municípios. O governo federal tem um papel na distribuição dos recursos, mas a execução é regional. Melhorar saúde, educação e segurança exige um grau elevado de coordenação entre as diferentes esferas de governo, porque você tem de estabelecer princípios nacionais de execução local. São poucos países da dimensão do Brasil que conseguem fazer isso. Aliás, nem tenho certeza se um país da dimensão do Brasil consegue fazer isso, pois os EUA deixam a desejar na questão da saúde. Melhorar serviços públicos universais no Brasil não é só um desafio econômico, uma questão de colocar mais recursos, é também um desafio de gestão, um desafio político de cooperação entre presidente, governadores e prefeitos. Vemos as brigas entre governo estadual de São Paulo com o federal. O desafio é você tentar fazer uma coordenação maior, porque no final das contas quem vai executar os programas são os prefeitos e os governadores. O recurso pode ser federal, mas eles que executam.

Dirceu: Em relação à questão de mobilidade, social, formação profissional, foi surpreendente o dado do IPEA de que existe apagão de mão de obra nas profissões sem qualificação, e não o contrário. É surpreendente a mudança educacional que está acontecendo no Brasil, o impacto será grande. Essas mudanças salariais e de distribuição de renda passam a se reverter agora em acesso a educação.

Barbosa: E são mudanças irreversíveis. Houve um reforço no investimento em educação e principalmente no FIES (Financiamento Estudantil). Hoje o governo brasileiro diz para o estudante “se você passar numa boa faculdade e não tiver dinheiro, não tem problema que o governo te financia, com uma taxa de juros de 3,4%, e com carência igual ao período do seu curso. Se o curso tem 4 anos, você tem carência de 4 anos depois que concluir a faculdade. E se você trabalhar para o governo, cada mês trabalhado paga 1% da dívida”. Esperava-se 150 mil matrículas no primeiro semestre deste ano, foram 500 mil. Imagine quando esse pessoal sair da universidade? Imagine o impacto que isso terá no mercado de trabalho? Na sociedade em geral? Levará um tempo, mas a mudança já está em curso.

Dirceu: Os dados da PNAD são impressionantes. As empresas já têm muito estrangeiro trabalhando também.

Barbosa: A questão da imigração está muito pequena ainda. Ainda vai entrar muito estrangeiro no Brasil se nós tivermos sucesso na aceleração do crescimento econômico e do desenvolvimento social. Todos os países ocidentais que tiveram sucesso nessa experiência atraíram muitos estrangeiros.

Dirceu: Em relação a esse impasse norte-americano sobre o limite da dívida. Países como China e Japão e outros países já se manifestaram contra o risco deste contágio e do eventual calote norte-americano.

Barbosa: O que existe é uma incerteza, porque a maior parte da riqueza mundial é aplicada em títulos do Tesouro norte-Americano. Japão, China, nós, países produtores de petróleo. Existe uma incerteza jurídica muito grande. Por isso que o calote não vai acontecer. Eles vão evitar. Mas é ruim porque fica o clima de incerteza e atrasa a recuperação da economia mundial.

Dirceu: Nossa última questão: os nossos grandes acertos ou grandes erros, ou insuficiências, aquilo que não fizemos e poderíamos ter feitos nos últimos onze anos.

Barbosa: O grande acerto, como já ouvi do ex-presidente Lula, foi mostrar que os pobres e os trabalhadores são solução e não problema. Que pode crescer distribuindo renda, que isso é uma oportunidade de crescimento e que isso gera a possibilidade de investimento, aumenta a produtividade, o tal do círculo virtuoso. Nosso país foi um dos poucos países que conseguiram fazer isso neste início do século XXI. Você olha para a China, para a Europa, Estados Unidos: o contexto é de repressão salarial e piora na distribuição de renda. Aqui é o contrário. Fomos ajudados por um contexto internacional favorável, é verdade, mas nos anos 90 nós também tivemos um contexto internacional favorável, que foi utilizado para fazer o Plano Real, mas depois a economia quebrou.Então, eu colocaria: um dos grandes acertos foi mostrar que o desenvolvimento social é possível. O segundo, a redução da fragilidade da economia brasileira, isso mostrou que é possível fazer desenvolvimento social reduzindo nossa fragilidade; reduziu a dívida pública, aumentou reservas internacionais, o que nos deixou muito menos expostos aos choques de outras partes do mundo. Antes passava qualquer marola e o país quebrava no dia seguinte. Hoje a marola vem, aumenta a inflação, acontece isso ou aquilo, mas o país não quebra. O país atravessa. Sobre falhas, a questão é mais de prioridades. Como você não consegue resolver tudo ao mesmo tempo, ficamos um pouco atrasados na questão da infraestrutura e de mais investimentos na educação para a sustentação desse crescimento. Não é bem falha, mas uma questão de escolha de prioridade para usar os recursos limitados do governo. Lembro que no primeiro mandato do Presidente Lula, na fase do ajuste fiscal, quando foi lançado o Bolsa Família, Lula disse: “Muitos dizem que eu não faço estrada, mas se eu tiver de escolher entre 1Km de asfalto e dar comida para quem tem fome, eu vou dar comida para quem tem fome”. Isso é prioridade, eu tenho “x” de orçamento, então vou começar aqui e o resto pode esperar. Prioridade.

Dirceu: Até porque a distribuição de renda fez com que o pais saísse do círculo vicioso que os financistas impunham.

Barbosa: Era uma economia frágil do ponto de vista financeiro. Ela crescia, mas não tinha mecanismo de sustentação interna. Vinha uma crise financeira de fora e parava tudo. Agora é o contrário, se você administrar bem, a economia vai crescendo pela sua própria dinâmica interna.




Um comentário:

  1. A entrevista está razoável. Mas o Nelson Barbosa anda tentando se fazer de "bonzinho" para o mercado financeiro, falando em arrocho fiscal, reduzir aportes ao BNDES, dando entrevistas para jornais só apoiando o que tem de pior.
    Mas hoje o presidente do BNDES dá um chega para lá em excelente entrevista no Valor. Esta sim, muito boa.

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