segunda-feira, 5 de julho de 2010

País calmoso e hereditário...

Meu interesse pela política veio, certamente, de meu pai, o capitão Accioly. Foi por meio dele que conheci, ainda garoto, personagens como o Marechal Lott, Jango, Brizola, Prestes e tantos outros. Claro que a sua influência foi determinante para que, na minha cabeça, as coisas ficassem claras e definitivas: no mundo sempre existiram os explorados e os exploradores, essa é uma verdade que aprendi cedo, guardo até hoje e vai morrer comigo.
Sabendo disso, tudo fica mais simples, a vida se torna menos estressante quando você sabe que um emprego é apenas um meio de subsistência, não um fim em si mesmo, e que as horas intermináveis que você passa no trabalho se chamam simplesmente "mais valia".
Com tão poucas dúvidas sobre como funciona esta engrenagem em que estamos metidos, fico até meio constrangido quando acompanho o noticiário político brasileiro, às vésperas de mais uma eleição (quase) geral.
Realmente me impressiona a quantidade de bobagens que são ditas por esses canastrões que se dizem políticos experientes - e pela reprodução fiel, linear, sem contextualização, sem nenhum nuance, de tais despautérios, por uma imprensa rasa, despreparada, ruim mesmo.
É o caso, por exemplo, dessa escolha do vice de Serra, um deputado sem nenhuma expressão, que o candidato oposicionista mal conhecia. Será que nenhum dos tais analistas, cientistas políticos e assemelhados é incapaz de fazer uma análise séria do episódio? Será pedir demais que algum jornalista forneça ao público a informação verdadeira de como o sujeito foi escolhido?
Ah, deixa para lá. Já estou velho demais para acreditar em contos de fadas...
Uma das histórias mais interessantes que o capitão Accioly me contava era exatamente sobre as besteiras faladas pelos políticos. É um "causo" antigo, que ele recolheu no tempo em que esteve no Espírito Santo, provavelmente em Cachoeiro de Itapemirim, onde ele serviu logo depois que se casou - e onde eu nasci.
É sobre um discurso de um político com pretensões intelectuais, literárias até, que se revela uma monumental bobagem. Como me lembrava dele, mesmo décadas depois de ouví-lo de meu pai, achei que era a hora de procurar mais detalhes sobre tal peça de oratória. A parte que conhecia era essa: "Guarapari, país calmoso e hereditário, onde se respira o ar por conseqüência. De um lado, o oceano marital, de outro, o oceano matagal!"
O Google se encarregou de contar o resto da história, que tirei de um site da cidade:

"Discurso proferido a Guarapari em 1916, por ocasião de uma visita oficial do presidente do Estado, cel. Marcondes de Alves de Souza, por um vereador, mulato escuro, pernóstico e rábula da comarca, o sr. Belarmino Sant'Ana, na cerimônia de inauguração do cemitério da cidade:
- Exm°. sr. presidente do Estado.
- Exm°. sr. padre Frois, digno representante do senhor bispo.
- Exm°. autoridades civis e militares .
- Minhas senhoras e meus senhores .
Guarapari é e sempre será o país da saúde e das maravilhas. Aqui nunca ninguém morre e nem se entristece, mesmo que queira. Tanto isso é uma verdade verdadeira que, para que fosse inaugurado este cemitério no dia de hoje, já feito e construído há mais de dez anos não se sabe para que e nem porque , foi preciso que arrastasse as pressas um defunto emprestado em Benevente, aliás um defunto morto da pior espécie, pois não passa de um molambo, como todos podem ver.
O mundo todo sabe que Guarapari é um país calmoso e hereditário onde se respira o ar por conseqüência, pois de um lado (o orador esticou o braço em direção ao mar) tem o oceano marital e do outro lado (o orador esticou o outro braço e indicou a floresta ao longe) tem o oceano matagal.
(Ouviu-se uma voz na multidão: "Cala a boca negro burro.")
- Sou burro, sim, porém artista como uma locomotiva que gera no azul do firmamento.
Sou negro, sim, mas porém a cor do meu epiderme não inflói, nem contribói, como diria o grande marechal Hermes. Negro sim eu sou e repito, mas, todavia, honesto como um corno. Esse aparte que acabamos de ouvir, senhor presidente do Estado, é a prova provada, das razões porque esta merda de cidade não vai adiante e eu me recuso a continuar falando para ignorantes e analfabetos . Tenho dito.
E desceu do palanque dando bananas para a multidão."

Não posso atestar a veracidade da "causo". De qualquer modo, como ele persiste no tempo, é bem capaz de ser verdadeiro.
É algo para se pensar: se um simples vereador de uma cidadezinha perdida no Brasil, lá no tempo do Onça, foi capaz de passar para a história por ter feito um discurso tão disparatado, o que dizer das notáveis figuras públicas de hoje, que têm à sua disposição os mais modernos meios de comunicação?
As bobagens que eles repetem, pelo menos nesta campanha eleitoral, seriam capazes de fazer inveja a um Odorico Paraguaçu.
Só para ficar no exemplo mais óbvio, temos este incrível José Serra, autor de pérolas raras:
"Para não pegar a gripe suína, é só não ficar perto dos porquinhos"; "Já nasci preparado"; "Pode ter amante, mas precisa ser discreto", são as mais recentes de uma vasta coleção.
Serra, é lógico, não é o único, mas representa como ninguém esse tipo de pessoa pública que amealhou um conhecimento de almanaque e passa a exibi-lo em qualquer ocasião que pode, ofendendo a pobre audiência com frases feitas, citações inúteis e, pior de tudo, mentiras deslavadas.
PS: A peça "O Bem Amado", de Dias Gomes, que se transformou na célebre novela da Globo, hoje filme, foi inspirada nesse cemitério de Guarapari, que nunca era inaugurado, por falta de mortos. E Odorico, com seu fraseológico absurdo, nasceu com o mesmo gene do rábula Belarmino Sant'Ana - raiz profícua que criou tantos e tão conhecidos personagens que desfilam sua monumental ignorância por aí.

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